Em dias do ano de 1880 Childerico José Fernandes de Queiróz Filho,
nascido em 1865, Pau dos Ferros, Alto Oeste do Rio Grande do Norte, o segundo
do seu nome, aos quinze anos de idade, portanto em 1880, quiçá alavancado pelas
histórias e estórias que vinham da Amazônia longínqua, das quais eram
protagonistas homens do Sertão da Serra das Almas e arredores, contadas nas
feiras e na lide com o gado e a lavoura, durante o dia, e à noite, nos
alpendres das casas, à luz das lamparinas, de riquezas imensas construídas de
um dia para o outro na colheita do látex, ou mesmo pelo desejo de tomar
distância de um futuro sem perspectivas para um órfão de pai e mãe cuja herança
tinha muitos donos, montou num cavalo e arribou no mundo, no rumo da distante
Belém do Pará.
E assim se passaram quase sessenta anos até que
seus ossos cansados pousassem de vez na mítica Casa-Grande da fazenda “João
Gomes”, que pertencera a seu pai e ascendentes, adquirida comprando as partes
de seus irmãos e herdeiros, famosa por tantas e tantas histórias, dentre outras
a dos nove ou onze filhos e filhas concebidos pelo Padre Bernardino José de
Queiróz e Sá, e criados em seus sótãos, porão, quintais e oitões, uma das quais
viria a ser sua madrasta, posto que herdeira única de toda aquela imensidão
rural, por ter sido adotada por seu único irmão[1], o renomado Major Ephiphanio.
Mas seu pouso duraria pouco. Childerico II trouxera
consigo, da Amazônia, uma moléstia mortal que o conduziria ao descanso eterno
em um lugar jamais antes por ele visitado, o Rio de Janeiro. Em 26 de março de
1939 o “Guerreiro do Yaco”, como o denominou Calazans Fernandes, autor de uma
trilogia que por intermédio desse singular personagem conta a história do
Sertão do Alto Oeste do Rio Grande do Norte, o Sertão da “Serra das Almas” e
arredores, desde sua origem até meados do século XX, finalmente foi acertar
suas contas com o Criador, a quem ele, ferrenhamente, ateu convicto, negava a
existência.
Nos quase sessenta anos de vida na Amazônia
Childerico II se transformou em uma lenda que sobrevive esmaecida em livros e
documentos. Nada que possa dar a verdadeira dimensão de sua história. Somente
aqui e ali encontramos o rastro forte dos seus passos e o eco de sua voz
autoritária, a traçar contornos pouco nítidos de um homem que viveu muitas
vidas em apenas uma existência.
A história da construção de sua imensa riqueza, nos
primeiros anos de saga amazônica, quando comprou um seringal denominado
“Oriente”, fronteira com a Bolívia, maior que o Estado do Sergipe, depois de
passar onze anos desaparecido na floresta, rio Yaco acima e adentro, onde homem
algum, exceto índios ferozes, ousavam viver, bem como sua volta triunfal,
conduzindo barcos e mais barcos repletos de látex, para serem vendidos a peso
de ouro, nos portos de Manaus, por si só valem um livro. E que livro!
Assim como vale um livro as batalhas que enfrentou:
a luta pelo Acre com Plácido de Castro; a tomada pela força das armas de Sena
Madureira, enquanto líder do Movimento Autonomista do Alto Purus, e assim por
diante. Está lá, no Dicionário das Batalhas Brasileiras[2], de Hernâni Donato: “8.6.1912 – SENA MADUREIRA.
AC. Movimento autonomista do Alto Purus. A 7.5[3], em protesto contra o então Prefeito
regional e o alegado descaso do Governo Federal, autonomistas declararam
instalado o Estado Livre do Acre, embrião do futuro Acreânia. Chefes, os
“coronéis” Childerico Fernandes, José de Alencar Matos, Raimundo Freire.
Armaram 350 homens para enfrentar forças a serem enviadas contra o novo Estado.
A 8.6[4] estas apresentaram-se, federais e
estaduais. E venceram, dispersando os autonomistas, depois de seis horas de
combate, dez mortos entre os levantados, incêndios, assassinatos vingativos.”
Ou a luta por Bragança, no Pará, da qual foi
Prefeito várias vezes. E a luta por Belém, com Lauro Sodré, para depor Enéias
Martins. Assim como a luta ao lado do Governador Eurico de Freitas Vale,
durante a Revolução de 30, quando compareceu para combater com trezentos homens
por ele armados e municiados!
Em – “Chamas do Passado” - segundo volume inédito
da trilogia de Calazans Fernandes, a espinha dorsal, o fio-condutor continua
sendo Childerico II. Sua história perpassa cada capítulo, enquanto pano-de-fundo,
e nos dá a dimensão de homens como ele, heroicos, verdadeiros titãs, cuja fôrma
está desaparecida. Homens que construíam o próprio destino na marra, como se
diz no Sertão. Homens de feitos e glória. Homens que levaram “uma vida de
conquistador bandeirante, de homem antigo, aventureiro das matas e da indiaria,
reconstruindo com obstinação impassível o que a tempestade derrubava. Dessa
fibra teimosa se teceram os ombros que empurraram o meridiano para o Oeste”,
para citar Cascudo, parente distante pelos Fernandes Pimenta, de Caraúbas, que
lhe escreveu um longo panegírico, ao saber de sua morte.
Nesse segundo volume nos damos conta de como são
profundas as relações dos que nasceram no entorno da “Serra das Almas” com os
cristãos-novos, judeus que povoaram nossos sertões desde que por aqui aportou
Pedro Álvares Cabral. Mas não somente. Também nos damos conta da presença de
personagens significativos da nossa história potiguar a assuntar o ouro da
“Serra das Almas”. Que dizer das armaduras e armas lá encontradas, no Serrote
do “Cabelo-Não-Tem” ao lado de bruacas de couro cru cheias de pepitas de ouro?
E quanto aos descendentes dos sobreviventes dos oito naufrágios nas costas do
Rio Grande do Norte que subiram os rios Sertão acima, até o Alto-Oeste?
São muitas histórias – e estórias também,
imbrincadas entre si pelo talento de Calazans Fernandes que a Fundação José
Augusto, muito apropriadamente, poderia resgatar do limbo na fabulosa Coleção
Cultura Potiguar. Por esse trabalho, pela Coleção, para a obra a ser
apresentada ao público leitor, viriam todos nossos aplausos.
FONTE
- HONÓRIO DE MEDEIROS